terça-feira, 7 de novembro de 2017

Produção da ‘verdade’, Serviço Social e sigilo profissional: dilemas no cotidiano profissional no sociojurídico

“Verdade”. Quantos sentidos esta simples palavra pode ter? E quando se trata da Justiça, que sentidos a verdade toma? Esta foi a discussão abordada pela Atividade Programada “o Serviço Social na área sociojurídica”, organizado pelo Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, no dia 27 de outubro. Os palestrantes do dia foram a assistente social aposentada do TJ-SP e coordenadora da ATP, Eunice Fávero e o assistente social e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Charles Toniolo.

Eunice iniciou ao falar do sentido da “verdade” no meio jurídico, no qual ela é identificada com a justiça, “o estabelecimento da verdade dos fatos para absolver ou para condenar alguém envolvido em algum processo judicial”. Isso explica o fato, por exemplo, de atualmente se buscar cada vez mais o uso de protocolos de entrevistas, tanto com adultos como com crianças, como nos casos de depoimento especial de crianças e adolescentes vitimas de violência. O jurídico privilegia a verdade que corresponde aos fatos, procura saber o que realmente se passou para uma tomada de decisão, buscando “fazer justiça”. E o que pode ser considerado um fato? Vai depender do que as leis definem como tal, lembrando que nossa legislação parte da lógica positivista, privilegiando o sistema de classes.
 
A professora trouxe um pouco sobre a obra ”A verdade e as formas jurídicas”, do filósofo francês Michel Foucault, na qual ele trata do aparecimento de personagens e instituições relacionadas à “extração da verdade dos fatos”. Ele identifica o aparecimento de uma “justiça” que se impõe aos indivíduos, que são submetidos a um poder exterior – o Judiciário -; o aparecimento do procurador como representante do poder político lesado; o aparecimento da noção de “infração” como ofensa não só de um indivíduo para o outro, mas também do indivíduo para o Estado e, por fim, o aparecimento do inquérito, que vai possibilitar o estabelecimento do que aconteceu, por meio de depoimentos de pessoas. Nas práticas judiciárias o inquérito substitui o flagrante delito.

Nos espaços de trabalho do Sociojurídico, o assistente social será chamado a contribuir com a constatação da “verdade dos fatos”, por meio dos seus estudos e perícias sociais.  
Depoimento especial de crianças e adolescentes
É neste contexto que ocorre a aprovação da Lei 13.431/17, que institui o depoimento especial de crianças e adolescentes vitimas de violência, que passa a vigorar em abril de 2018. Trata-se do marco legal para a prática de metodologias de inquirição de crianças e adolescentes, às quais os profissionais do Serviço Social começam a ser chamados a atuarem.
A justificativa para tal lei baseou-se principalmente na violência institucional, na ideia de que “crianças e adolescentes são expostos à vitimização secundária produzida pela ação ineficiente do Estado”. No entanto, quem irá controlar a chamada “violência institucional”? “Não podemos ser ingênuos nesta situação, na realidade, quem vai ser o grande culpado neste quadro será a família, especialmente a família pobre”, alegou Eunice.
De acordo com a professora, a principal controvérsia do depoimento especial é o fato de colocar a criança como a responsável pela produção da prova judicial nas situações em que figura como vitima ou testemunha de violência, com o objetivo de responsabilizar o autor desta violência. E o assistente social irá figurar como o responsável pela extração “técnica da verdade dos fatos”.
Responsabilização x proteção
Charles falou sobre como o discurso da responsabilização que sempre vem transpassado pelo discurso da proteção, como é o caso da Lei 13.431. “Há a ideia de que ao punir o agressor com a pena de prisão se protege a criança como se fosse uma equação matemática. E nós que trabalhamos com a criança sabemos que não é uma equação tão matemática assim”, expôs. “Estamos falando de relações familiares, relações afetivas, relações econômicas, de relações com a comunidade porque o pesa da prova fica para a criança para o resto da vida dela”, completou.
No entanto, essa tensão entre proteção e punição não é nova, sempre existiu na história das relações sociais. Ela é própria da contradição da sociedade de classes. “Esta contradição não é algo que está posto do depoimento especial, é algo que está posto no cenário político e em determinados períodos históricos temos maior ênfase em práticas protetivas ou maior ênfase em práticas punitivas”, alegou.
 
A linguagem e a verdade
O professor nos lembra que “inquérito” vem do latim “inquaritare”, que significa “procurar com ardor”. Ou seja, dentro do universo da Justiça, o inquérito tem como propósito “buscar com ardor a verdade”.
 
Para Charles, não podemos nos esquecer que a “verdade” se expressa na linguagem e este é um debate que o Serviço Social precisa enfrentar. “A verdade tem duas dimensões: como fato concreto e como discurso. Se a linguagem permite conhecermos a verdade, ela também serve para mistificar e não podemos esquecer que o que falamos tem poder de ‘verdade’”, explicou.
 
Ele lembra da ideia de Comte de que “a ciência é a nova religião da humanidade”. Se antes quem revelava a verdade era a religião, agora quem o faz é a ciência. Isso nos demonstra que a técnica tem um fundamento de verdade porque ela advém do conhecimento científico e, aplicar a técnica é usar a ciência na intervenção do mundo. O Serviço Social não é exceção à regra e muitas vezes vemos a ideia de que o trabalho se reduz a manejar os instrumentos. “O fato é que os instrumentos são construídos a partir do conhecimento que se propõe a ser verdadeiro e eles vão ser manejados por trabalhadores no âmbito do trabalho a partir da classificação de categorias profissionais, entre elas, o Serviço Social”, apontou.
 
O sigilo
Charles trouxe a discussão de que o direito à vida privada nasceu com a revolução burguesa. A oposição entre público e privado é a base do Liberalismo. O direito ao privado nasce como um modo de o Estado não interferir no mercado. E ele nasce atrelado ao interesse de classe.
 
No entanto, esta lógica não vale para os usuários do Serviço Social. “Para acessar direitos se tem o direito violado. E a ideia do sigilo vai se movimentar dentro dos interesses em jogo”, disse o professor.
 
A legislação traz o sigilo, a princípio como um direito do usuário. Porém, não é a legislação que cria o sigilo. De acordo com Charles, o sigilo profissional surge com o surgimento da medicina racional, que vem como uma alternativa à explicação religiosa. “Para que a população confie naquele que se propõe a cuidar do corpo, a cuidar da sua vida de forma laica, não se pode sair falando tudo o que a pessoa te conta. A hipótese que tenho é a de que o sigilo surge como uma forma de legitimar a medicina racional junto à população”, apontou.
 
A questão do segredo na vida privada surge na religião e a ideia de se compartilhar segredos traz junto uma ideia de vinculo. Então, o segredo são as verdades ocultas e quem as revela é a ciência por meio daqueles que são treinados pelos conhecimentos, ou seja, nós.
 
O sigilo aparece no Código de Ética do Serviço Social como direito do profissional. “Nas outras profissões ele aparece como dever, na nossa colocamos como direito”, Charles quer entender o porquê na sua pesquisa de doutorado. Ele acredita que esta ideia tem a ver com a legitimidade. “Mas às vezes isso é confundido, pois se o sigilo é direito do usuário em primeiro lugar, ele também é dever do profissional”, defendeu.
 
Charles acredita que o que o profissional divulga do seu trabalho com o usuário são escolhas. “Nós precisamos entender que nosso relatório é público. A partir do momento que você carimba, assina e entrega para alguém, você perde o controle sobre ele”, expôs. “O sigilo não está no envelope, está no que você escolheu revelar ou não”, completou. Outro ponto que merece atenção é o fato de que no relatório o sujeito da narração é o profissional e não o individuo. Este é sujeito na entrevista, daí o cuidado com o que e de que forma revelamos nos relatórios.
 
 
 
 

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