“Verdade”. Quantos sentidos
esta simples palavra pode ter? E quando se trata da Justiça, que sentidos a
verdade toma? Esta foi a discussão abordada pela Atividade Programada “o
Serviço Social na área sociojurídica”, organizado pelo Programa de Estudos Pós
Graduados em Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, no dia 27 de outubro. Os
palestrantes do dia foram a assistente social aposentada do TJ-SP e
coordenadora da ATP, Eunice Fávero e o assistente social e professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Charles
Toniolo.
Eunice iniciou ao
falar do sentido da “verdade” no meio jurídico, no qual ela é identificada com
a justiça, “o estabelecimento da verdade dos fatos para absolver ou para
condenar alguém envolvido em algum processo judicial”. Isso explica o fato, por
exemplo, de atualmente se buscar cada vez mais o uso de protocolos de entrevistas,
tanto com adultos como com crianças, como nos casos de depoimento especial de
crianças e adolescentes vitimas de violência. O jurídico privilegia a verdade
que corresponde aos fatos, procura saber o que realmente se passou para uma
tomada de decisão, buscando “fazer justiça”. E o que pode ser considerado um
fato? Vai depender do que as leis definem como tal, lembrando que nossa
legislação parte da lógica positivista, privilegiando o sistema de classes.
A professora trouxe um pouco
sobre a obra ”A verdade e as formas jurídicas”, do filósofo francês Michel
Foucault, na qual ele trata do aparecimento de personagens e instituições
relacionadas à “extração da verdade dos fatos”. Ele identifica o aparecimento
de uma “justiça” que se impõe aos indivíduos, que são submetidos a um poder
exterior – o Judiciário -; o aparecimento do procurador como representante do
poder político lesado; o aparecimento da noção de “infração” como ofensa não só
de um indivíduo para o outro, mas também do indivíduo para o Estado e, por fim,
o aparecimento do inquérito, que vai possibilitar o estabelecimento do que
aconteceu, por meio de depoimentos de pessoas. Nas práticas judiciárias o
inquérito substitui o flagrante delito.
Nos espaços de trabalho do
Sociojurídico, o assistente social será chamado a contribuir com a constatação
da “verdade dos fatos”, por meio dos seus estudos e perícias sociais.
Depoimento especial
de crianças e adolescentes
É
neste contexto que ocorre a aprovação da Lei 13.431/17, que institui o
depoimento especial de crianças e adolescentes vitimas de violência, que passa
a vigorar em abril de 2018. Trata-se do marco legal para a prática de
metodologias de inquirição de crianças e adolescentes, às quais os
profissionais do Serviço Social começam a ser chamados a atuarem.
A
justificativa para tal lei baseou-se principalmente na violência institucional,
na ideia de que “crianças e adolescentes são expostos à vitimização secundária
produzida pela ação ineficiente do Estado”. No entanto, quem irá controlar a chamada
“violência institucional”? “Não podemos ser ingênuos nesta situação, na
realidade, quem vai ser o grande culpado neste quadro será a família,
especialmente a família pobre”, alegou Eunice.
De
acordo com a professora, a principal controvérsia do depoimento especial é o
fato de colocar a criança como a responsável pela produção da prova judicial
nas situações em que figura como vitima ou testemunha de violência, com o
objetivo de responsabilizar o autor desta violência. E o assistente social irá
figurar como o responsável pela extração “técnica da verdade dos fatos”.
Responsabilização x
proteção
Charles falou sobre
como o discurso da responsabilização que sempre vem transpassado pelo discurso
da proteção, como é o caso da Lei 13.431. “Há a ideia de que ao punir o
agressor com a pena de prisão se protege a criança como se fosse uma equação
matemática. E nós que trabalhamos com a criança sabemos que não é uma equação
tão matemática assim”, expôs. “Estamos falando de relações familiares, relações
afetivas, relações econômicas, de relações com a comunidade porque o pesa da
prova fica para a criança para o resto da vida dela”, completou.
No
entanto, essa tensão entre proteção e punição não é nova, sempre existiu na
história das relações sociais. Ela é própria da contradição da sociedade de
classes. “Esta contradição não é algo que está posto do depoimento especial, é
algo que está posto no cenário político e em determinados períodos históricos
temos maior ênfase em práticas protetivas ou maior ênfase em práticas
punitivas”, alegou.
A linguagem e a
verdade
O
professor nos lembra que “inquérito” vem do latim “inquaritare”, que significa
“procurar com ardor”. Ou seja, dentro do universo da Justiça, o inquérito tem
como propósito “buscar com ardor a verdade”.
Para
Charles, não podemos nos esquecer que a “verdade” se expressa na linguagem e
este é um debate que o Serviço Social precisa enfrentar. “A verdade tem duas
dimensões: como fato concreto e como discurso. Se a linguagem permite
conhecermos a verdade, ela também serve para mistificar e não podemos esquecer
que o que falamos tem poder de ‘verdade’”, explicou.
Ele
lembra da ideia de Comte de que “a ciência é a nova religião da humanidade”. Se
antes quem revelava a verdade era a religião, agora quem o faz é a ciência.
Isso nos demonstra que a técnica tem um fundamento de verdade porque ela advém
do conhecimento científico e, aplicar a técnica é usar a ciência na intervenção
do mundo. O Serviço Social não é exceção à regra e muitas vezes vemos a ideia
de que o trabalho se reduz a manejar os instrumentos. “O fato é que os
instrumentos são construídos a partir do conhecimento que se propõe a ser
verdadeiro e eles vão ser manejados por trabalhadores no âmbito do trabalho a
partir da classificação de categorias profissionais, entre elas, o Serviço
Social”, apontou.
O sigilo
Charles
trouxe a discussão de que o direito à vida privada nasceu com a revolução
burguesa. A oposição entre público e privado é a base do Liberalismo. O direito
ao privado nasce como um modo de o Estado não interferir no mercado. E ele
nasce atrelado ao interesse de classe.
No
entanto, esta lógica não vale para os usuários do Serviço Social. “Para acessar
direitos se tem o direito violado. E a ideia do sigilo vai se movimentar dentro
dos interesses em jogo”, disse o professor.
A
legislação traz o sigilo, a princípio como um direito do usuário. Porém, não é
a legislação que cria o sigilo. De acordo com Charles, o sigilo profissional
surge com o surgimento da medicina racional, que vem como uma alternativa à
explicação religiosa. “Para que a população confie naquele que se propõe a
cuidar do corpo, a cuidar da sua vida de forma laica, não se pode sair falando
tudo o que a pessoa te conta. A hipótese que tenho é a de que o sigilo surge
como uma forma de legitimar a medicina racional junto à população”, apontou.
A
questão do segredo na vida privada surge na religião e a ideia de se
compartilhar segredos traz junto uma ideia de vinculo. Então, o segredo são as
verdades ocultas e quem as revela é a ciência por meio daqueles que são
treinados pelos conhecimentos, ou seja, nós.
O
sigilo aparece no Código de Ética do Serviço Social como direito do
profissional. “Nas outras profissões ele aparece como dever, na nossa colocamos
como direito”, Charles quer entender o porquê na sua pesquisa de doutorado. Ele
acredita que esta ideia tem a ver com a legitimidade. “Mas às vezes isso é
confundido, pois se o sigilo é direito do usuário em primeiro lugar, ele também
é dever do profissional”, defendeu.
Charles
acredita que o que o profissional divulga do seu trabalho com o usuário são
escolhas. “Nós precisamos entender que nosso relatório é público. A partir do
momento que você carimba, assina e entrega para alguém, você perde o controle
sobre ele”, expôs. “O sigilo não está no envelope, está no que você escolheu
revelar ou não”, completou. Outro ponto que merece atenção é o fato de que no
relatório o sujeito da narração é o profissional e não o individuo. Este é
sujeito na entrevista, daí o cuidado com o que e de que forma revelamos nos
relatórios.
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